30 de julho de 2012

Prefácio de "Sombras da Noite" (1977), de Stephen King

Vamos conversar, você e eu. Vamos conversar sobre o medo.
A casa está vazia quando escrevo isto; uma fria chuva de fevereiro cai lá fora. É noite. Às vezes, quando o vento sopra do jeito que está soprando agora, falta luz. Mas por enquanto não está faltando, então vamos conversar muito honestamente sobre o medo. Vamos conversar muito racionalmente sobre chegar às raias da loucura… e talvez cruzar a fronteira.
Meu nome é Stephen King. Sou um homem adulto, com mulher e três filhos. Eu os amo, e acredito que o sentimento seja recíproco. Meu trabalho é escrever, e é um trabalho de que gosto muito. As histórias – Carrie, a estranha, A hora do vampiro e O iluminado – fizeram sucesso suficiente para me permitir escrever em tempo integral, o que é algo agradável de se fazer. Neste momento da minha vida, parece que estou razoavelmente saudável. No ano passado, consegui diminuir meu vício de fumar, trocando a marca de cigarros sem filtro que fumava desde os 18 anos por uma outra, com baixos teores de nicotina e alcatrão, e ainda tenho esperanças de conseguir parar por completo. Minha família e eu vivemos numa casa agradável junto a um lago relativamente livre de poluição no Maine; no outono passado, acordei certa manhã e vi um cervo no gramado dos fundos, junto à mesa de piquenique. Temos uma vida boa.
Mesmo assim… vamos conversar sobre o medo. Não vamos elevar nossas vozes nem gritar; vamos conversar racionalmente, você e eu. Vamos conversar sobre o modo como o tecido resistente das coisas consegue se rasgar de maneira assustadoramente repentina.
À noite, quando vou para a cama, ainda me esforço para ter certeza de que minhas pernas estejam debaixo dos cobertores quando as luzes de apagam. Não sou mais criança, mas… não gosto de dormir com uma perna para fora. Porque se uma mão fria sair de sob a cama e agarrar meu tornozelo, sou capaz de gritar. Sim, sou capaz de gritar a ponto de acordar os mortos. Esse tipo de coisa não acontece, é claro, todos nós sabemos disso. Nas histórias que se seguem, você vai encontrar todo tipo de criaturas da noite: vampiros, amantes demoníacos, uma coisa que vive dentro de um armário, todo tipo de horrores diversos. Nenhum deles é real. Sei disso, e também sei que se eu tomar cuidado e ficar sempre com as pernas debaixo da coberta, ela jamais vai conseguir agarrar meu tornozelo.
Às vezes falo diante de grupos de pessoas interessadas pela escrita ou pela literatura, e antes que termine o tempo das perguntas e respostas, alguém sempre se levanta e indaga: Por que você escolheu escrever sobre temas tão horríveis?
Normalmente respondo com outra pergunta: Por que você acha que eu tenho escolha?
Escrever é meio que uma ocupação improvisada. Todos nós parecemos vir equipados com filtros no chão das nossas mentes, e todos os filtros têm tamanhos e tramas diferentes. O que fica preso no meu filtro pode passar pelo seu. O que fica preso no seu talvez passe sem problemas pelo meu. Todos nós parecemos ter a obrigação inata de remexer nos resíduos que ficam presos em nossos respectivos filtros mentais, e o que encontramos ali normalmente evolui para uma espécie de atividade paralela. O contador também pode ser um fotógrafo. O astrônomo talvez colecione moedas. O professor pode copiar entalhes de lápides, usando a técnica de passar carvão por cima de um papel. Os resíduos apanhados pelo filtro mental, aqueles que se recusam a passar, com freqüência se tornam a obsessão particular de cada um. Na sociedade civilizada, temos um acordo tácito de chamar nossas obsessões de “hobbies”.
Às vezes o hobby pode-se tornar uma ocupação em tempo integral. O contador pode descobrir que é capaz de ganhar dinheiro suficiente para sustentar a família tirando fotografias; o professor pode se tornar tão competentes nas cópias de lápides a ponto de começar a fazer conferências sobre o assunto. E há algumas profissões que começam como hobbies e continuam sendo hobbies mesmo depois que o praticante consegue ganhar a vida dedicando-se a eles; mas como hobby é uma palavra aparentemente tão corriqueira e sem graça, também temos um acordo tácito de chamar nosso hobbies profissionais de “as artes”.
Pintura. Escultura. Composição. Canto. Representar. Tocar um instrumento musical. Escrever. Livros já foram escritos sobre os setes assuntos em quantidade suficiente para afundar uma frota de transatlânticos de luxo. E a única coisa que parecemos concordar a respeito deles é o seguinte: que aqueles que se dedicam honestamente a estas artes continuariam a se dedicar mesmo se não fossem pagos por seus esforços; mesmo que seus esforços fossem criticados ou até difamados; mesmo sob risco de prisão ou morte. Para mim, esta parece ser uma definição bem precisa do comportamento obsessivo. Aplica-se aos hobbies comuns tanto quanto aos sofisticados q que chamamos “as artes”; colecionadores de armas colam em seus carros adesivos com a frase “você só tira minha arma dos dedos gelados do meu cadáver”, e nos subúrbios de Boston, donas de casa que descobriram a militância política durante a confusão dos ônibus* com freqüência exibem adesivos semelhantes com as palavras “você vai ter que me levar presa antes de tirar meus filhos do bairro” no vidro traseiro de seus carros de família. De maneira similar, se amanhã colecionar moedas passasse a ser ilegal, o astrônomo muito provavelmente não entregaria os centavos feitos de aço e as moedas de cinco centavos com efígie de búfalo; ia embrulhá-las cuidadosamente em plástico, enfiá-las no tanque da descarga da privada e regozijar-se com elas depois da meia-noite.
Parece que nos afastamos do assunto do medo, mas na verdade ainda não nos afastamos tanto assim. O resíduo que fica preso na tela do meu filtro mental é a substância do medo. Minha obsessão é pelo macabro. Não escrevi nenhuma das histórias que se seguem por dinheiro, embora algumas delas tenham sido vendidas para revistas antes de aparecerem aqui; e eu nunca devolvi um cheque sem tê-lo descontado. Posso ser obsessivo, mas não louco. No entanto, repito: não as escrevi por dinheiro; escrevi porque me ocorreu escrevê-las. Tenho uma obsessão comercializável. Há homens e mulheres loucos, presos em celas acolchoadas pelo mundo afora, que não têm tanta sorte assim.
Não sou um grande artista, mas sempre me senti compelido a escrever. Então, a cada dia volto a remexer nos resíduos, examinando os refugos da observação, da memória, da especulação, tentando criar algo com aquela substância que não passou pelo filtro e não conseguiu ir embora pelo ralo do subconsciente.
Eu e Louis L´Amour, o escritor de faroestes, poderíamos estar de pé nas margens de um pequeno lago no Colorado, e ambos poderíamos ter uma idéia exatamente no mesmo instante. Poderíamos ambos sentir o impulso de nos sentar e tentar expressá-la em palavras. A história dele talvez fosse sobre o direito à água na estação da seca; minha história provavelmente seria sobre uma criatura enorme e terrível emergindo das águas calmas e sumindo com carneiros… e cavalos… e pessoas. A “obsessão” de L´Amour está centralizada na história do Oeste americano; eu tendo mais na direção das coisas que se esgueiram sob a luz das estrelas. Ele escreve faroestes; eu escrevo histórias de terror. Ambos somos um pouco malucos.
As artes podem obcecar, e a obsessão é perigosa. É como uma faca dentro da mente. Em alguns casos – Dylan Thomas me vem à mente, e Ross Lockridge, e Hart Crane, e Sylvia Plath – , a faca pode se voltar selvagemente contra a pessoa que a empunha. A arte é uma doença localizada, normalmente benigna – pessoas criativas tendem a viver por longos anos -, às vezes terrivelmente maligna. Você usa a faca com cuidado, porque sabe que ela não se importa em saber quem está cortando. E se você for inteligente, remexe nos resíduos com cuidado… porque algumas coisas ali talvez não estejam mortas.
* nos anos 60, uma política norte americana que objetivava promover a integração racial levava de ônibus crianças de seu distrito residencial para estudar em escolas de distritos diferentes, numa espécie de permuta. Nos EUA, cada distrito é autônomo e as crianças estudam obrigatoriamente na escola pública de seu distrito – ou optam por uma escola particular, que é muito raro.
Depois de a pergunta sobre “por que você escreve essas coisas” ter sido respondida, surge outra que a acompanha: por que as pessoas lêem essas coisas? O que faz com que vendam? Essa pergunta leva consigo uma suposição oculta, e é a suposição de que gostar de histórias sobre o medo, sobre o terror, não é lá muito saudável. As pessoas que escrevem para mim muitas vezes começam dizendo, “imagino que você vai achar que sou estranho, mas eu realmente gostei de A Hora do Vampiro”, ou “provavelmente sou mórbido, mas adorei cada página de O Iluminado”…
Acho que a explicação para isso pode estar num trecho de uma crítica de cinema da revista Newsweek. A crítica de um filme de terror, não muito bom, e dizia algo mais ou menos assim: “…um filme maravilhoso para pessoas que gostam de diminuir a velocidade para ver acidentes de carro”. É uma frase incisiva, mas quando você pára pra pensar nela, vê que se aplica a todos os filmes e histórias de terror. A Noite dos Mortos Vivos, com suas cenas hediondas de canibalismo humano e matricídio, certamente era um filme destinado às pessoas que gostam de diminuir a velocidade para ver acidentes de carro; e quanto àquela garotinha vomitando sopa de ervilha em cima do padre, em O Exorcista? Drácula, de Bram Stoker, freqüentemente uma base de comparação para histórias modernas de terror (como deveria ser; é a primeira com um toque abertamente psicofreudiano), apresenta um maníaco chamado Renfield que devora moscas, aranhas e, por fim, um passarinho. Ele regurgita o passarinho, que havia comido inteiro, com penas e tudo. O romance também fala de empalação – a penetração ritual, se poderia dizer – de uma jovem e adorável vampira, e o assassinato de um bebê e sua mãe.
A grande literatura do sobrenatural muitas vezes contém a mesma síndrome do “vamos diminuir e dar uma olhada no acidente”: Beowulf matando a mãe de Grendel; o narrador de “O coração denunciador” desmembrando seu benfeitor acometido de catarata e colocando os pedaços debaixo das tábuas do piso; a feroz batalha do hobbit Sam contra Laracna, a aranha, no livro final da trilogia do anel, de Tolkien.
Alguns vão se opor com firmeza a esta linha de pensamento, dizendo que Henry James não nos mostra um acidente de carro em “A volta do parafuso”; dirão que as histórias de Nathaniel Hawthorne sobre o macabro, tais como “O jovem Goodman Brown” e “O véu negro do ministro” também são de melhor gosto do que Drácula. A idéia não faz sentido. Eles ainda estão mostrando acidentes de carro; os corpos foram removidos, mas ainda podemos ver as ferragens retorcidas e observar o sangue sobre o estofamento. Em alguns casos, a delicadeza, a ausência de melodrama, o tom grave e estudado de racionalidade que perpassa uma história como “O véu negro do ministro” é ainda mais terrível do que as monstruosidades batráquias de Lovecraft ou o auto-da-fé de “O poço e o pêndilo”, de Poe.
O fato é – e a maior parte de nós sabe disso, no fundo – que muito poucos entre nós conseguem evitar uma espiada nervosa para a sucata cercada por carros de polícia e sinais luminosos na estrada, à noite. Idosos apanham o jornal pela manhã e imediatamente abrem na coluna de óbitos, para ver quem se foi antes deles. Todos nós ficamos abalados por um momento quando ouvimos dizer que um Dan Blocker morreu, um Freddie Prinze, uma Janis Joplin. Sentimos terror misturado com um estranho júbilo quando ouvimos Paul Harvey anunciar no rádio que uma mulher foi apanhada pela hélice de um avião durante uma tempestade, num pequeno aeroporto do interior, ou que um homem foi vaporizado imediatamente num liquidificador industrial gigante quando um colega de trabalho esbarrou num dos controles. Não é preciso elaborar o óbvio; a vida está cheia de horrores pequenos e grandes, mas pelo fato de os pequenos serem aqueles que conseguimos compreender, são os que nos atingem com toda a força da mortalidade.
Nosso interesse nesses horrores de bolso é inegável, mas também o é nossa repulsa. Os dois se misturam com dificuldade, e o produto dessa mistura parece ser a culpa… uma culpa que não parece muito diferente da culpa que costuma acompanhar o despertar sexual.
Não me cabe dizer a você que não se sinta culpado, assim como não me cabe oferecer justificativas aos meus romances e aos contos que se seguem. Mas um interessante paralelo entre o sexo e o medo pode ser observado. Quando nos tornamos capazes de ter relações sexuais, nosso interesse por essas relações é despertado; o interesse, a menos que de algum modo seja pervertido, tende naturalmente na direção da cópula e da continuidade da espécie. Quando nos damos conta do nosso fim inevitável, também nos damos conta da emoção do medo. E acho que, como a cópula leva à auto preservação, todo o medo leva a uma compreensão do nosso fim derradeiro.
Há uma antiga fábula sobre sete cegos que agarraram sete diferentes partes de um elefante. Um deles achou que segurava uma cobra, outro achou que tinha nas mãos uma palmeira gigante. Outro pensou que tocava numa pilastra de pedra. Quando se reuniram, chegaram à conclusão de que se tratava de um elefante.
O medo é a emoção que nos torna cegos. De quantas coisas temos medo? Temos medo de desligar a luz quando nossas mãos estão molhadas. Temos medo de enfiar uma faca dentro da torradeira para tirar o muffin inglês que ficou preso lá dentro sem desligá-la primeiro da tomada. Temos medo do que o médico pode nos dizer quando o exame tiver terminado; quando o avião de repente dá uma sacudida em pleno vôo. Temos medo de que o petróleo acabe, de que o ar puro se acabe, de que a água potável, a vida saudável se acabe. Quando a filha prometeu chegar as onze e já é meia noite e quinze e a chuva congelada fustiga a janela como areia seca, nós nos sentamos e fingimos assistir Johnny Carson, e olhamos ocasionalmente para o telefone mudo, e sentimos a emoção que nos torna cegos, a emoção que deixa em ruínas o processo do pensamento.
A criança é uma criatura destemida apenas até a primeira vez em que sua mãe não está lá pra colocar o mamilo dentro de sua boca quando ela chora. O bebê que começa a andar logo descobre as verdades duras e dolorosas da porta que se bate, da boca acesa do fogão elétrico, da febre que vem com a laringite ou o sarampo. As crianças aprendem rápido o medo; conseguem percebê-lo no rosto da mãe ou do pai quando um deles entra no banheiro e as vê com um frasco de remédio ou o aparelho de barbear.
O medo nos deixa cegos, e tocamos cada medo com a ávida curiosidade do interesse próprio, tentando construir um todo a partir de uma centena de partes, como os homens cegos e seu elefante.
Sentimos a forma. As crianças percebem depressa, esquecem, e reaprendem quando se tornam adultas. A forma está ali, e a maioria de nós se dá conta do que se trata mais cedo ou mais tarde: é a forma de um corpo debaixo de um lençol. Todos os nossos medos reunidos constituem um grande medo, todos os nossos medos são parte desse grande medo – um braço, uma perna, um dedo, uma orelha. Temos medo do corpo debaixo do lençol. É o nosso corpo. E o grande atrativo da ficção de terror ao longo das épocas é que ela serve de ensaio para a nossa própria morte.
Esse ramo nunca foi muito respeitado; durante muito tempo os únicos amigos que Poe e Lovecraft tinham eram os franceses, que de algum modo chegaram a um acordo tanto com o sexo quanto com a morte, um acordo para o qual os compatriotas americanos de Poe e Lovecraft não tiveram paciência. Os americanos estavam ocupados construindo rodovias, e Poe e Lovecraft morreram pobres. A fantasia de Tolkien sobre a Terra Média vagou a esmo durante vinte anos antes de obter algum sucesso fora do nicho da contracultura, e Kurt Vonnegut, cujos livros geralmente lidam com a idéia do ensaio para a morte, tem enfrentado uma onda constante de críticas, a maioria delas chegando às raias da histeria.
Talvez isso se dê porque o autor de histórias de terror sempre traz más notícias: você vai morrer, ele fala; diz pra você não dar importância a Oral Roberts** e seu “algo de bom vai acontecer com você”, porque algo de ruim também vai acontecer com você, e talvez seja câncer, ou talvez seja ataque cardíaco, ou talvez seja um acidente de carro, mas vai acontecer. E o autor toma sua mão na dele, e o leva para dentro do quarto e coloca suas mãos sobre aquela forma debaixo do lençol… e lhe diz para tocar aqui… aqui… e aqui…
É claro que os temas da morte e do medo não são território exclusivo do escritor de terror. Vários dos escritores chamados “tradicionalistas” lidaram com esses temas, e de uma variedade de formas diferentes – desde “Crime e Castigo”, de Fiodor Dostoievski, a “Quem tem medo de Virgínia Woolf?”, de Edward Albee e às histórias de Lew Archer, por Ross MacDonald. O medo sempre foi um tema importante. A morte foi um tema importante. São duas constantes do ser humano. Mas apenas o escritor de terror e do sobrenatural dá ao leitor uma oportunidade para total identificação e catarse. Os que trabalham no gênero com a mínima compreensão que seja do que estão fazendo sabem que todo o território do horror e do sobrenatural é uma espécie de filtro entre o consciente e o subconsciente; a ficção de terror é como uma estação central de metrô na psique humana, entre a linha azul daquilo que conseguimos incorporar com segurança e a linha vermelha daquilo de que precisamos nos livrar, de um jeito ou de outro.
Quando você lê histórias de horror, não acredita realmente no que está lendo. Não acredita em vampiros, lobisomens, caminhões que subitamente funcionam, e se movem sozinhos. Os horrores em que todos nós acreditamos são do tipo descrito Dostoievski e Albee e MacDonald: o ódio, a alienação, envelhecer sem amor, adentrar um mundo hostil com as pernas inseguras da adolescência. Nós somos, em nosso mundo real e cotidiano, muitas vezes semelhantes às máscaras da Comédia e da Tragédia, rindo por fora, uma careta de dor por dentro. Há um interruptor central em algum lugar dentro de nós, um transformador, talvez, onde os fios que ligam as duas máscaras se conectam. E esse é o local onde a história de terror muitas vezes atinge seu alvo.
O escritor de histórias de terror não é tão diferente do comedor de pecados galês, que teoricamente assume os pecados do caro falecido comendo a comida dele. O conto que trata de monstruosidades e terror é um cesto mais ou menos cheio de fobias; quando o escritor passa, você tira do cesto um dos horrores imaginários dele e coloca ali um dos seus horrores pessoais reais – pelo menos por algum tempo.
Nos idos de 1950, houve uma onda tremenda de filmes sobre insetos gigantes – O Mundo em Perigo, O Começo do Fim, The Deadly Mantis (A louva-a-deus mortífera) e assim por diante. Quase sem exceção, com o desenrolar do filme descobríamos que aqueles mutantes horrorosos e gigantescos eram resultado de testes atômicos no novo México ou em algum atol no Pacífico (e no mais recente Horror of Party Beach (O horror na praia de festas), que poderia ter recebido o subtítulo de Beach Blanket Armaggedon (Armageddon na toalha de praia), a culpa caia no lixo atômico). Considerados em conjunto, os filmes de insetos gigantes formam um padrão inegável, uma desconfortável gestald do terror de um país inteiro diante da nova era que o Projeto Manhattan inaugurara. Mais tarde nos anos 50 houve um ciclo de filmes de terror “adolescentes”, começando com I was a teenage werewolf e culminando com épicos como Teenagers from outer space (adolescentes extraterrestres) e A Bolha Assassina, em que um Steve McQueen imberbe lutava contra uma espécie de gelatina mutante com a ajuda de seus amigos adolescentes. Numa época em que todas as revistas semanais continham pelo menos um artigo sobre o aumento da delinqüência juvenil, os filmes de terror juvenis expressavam o desconforto de todo um país diante da revolução jovem que já se fermentava; quando você via Michael London se transformar num lobisomem com um casaco de ginasial, uma conexão se estabelecia entre a fantasia na tela e suas próprias ansiedades flutuantes dirigidas ao nerd no carrão envenenado que sua filha estava namorando. Para os próprios adolescentes (eu era um deles e falo por experiência própria), os monstros produzidos pelos estúdios da American-Internacional davam a oportunidade de ver alguém ainda mais feio do que eles se sentiam; o que eram umas poucas espinhas comparadas àquela coisa trôpega que antes era um ginasial em I was a teenage Frankenstein (eu fui um Frankenstein adolescente)? O mesmo ciclo também expressava os sentimentos dos próprios adolescentes, de que estavam sendo injustamente subjulgados e diminuídos pelos mais velhos, que seus pais simplesmente “não entendiam”. Os filmes obedecem a uma formula (como grande parte da ficção de terror, escrita ou filmada), e o que esta formula expressa com maior clareza é a paranóia de toda uma geração – uma paranóia sem dúvida causada, em parte, por todos os artigos que seus pais estavam lendo. Nos filmes, uma criatura terrível e verruguenta está ameaçando Elmville. Os garotos sabem, porque o disco voador pousou perto da alameda dos namorados. No primeiro rolo de filme, a criatura verruguenta mata um velho numa picape (o velho era invariavelmente interpretado por Elisha Cook Jr). Nos três rolos seguintes, os garotos tentam convencer os mais velhos de que aquela criatura verruguenta está de fato à solta nas redondezas. “Dêem o fora daqui antes que eu prenda vocês todos por viola o toque de recolher!”, o chefe de polícia de Elmville brada logo antes que o monstro se esgueire pela Main Street, deixando um rastro de destruição por toda parte. No fim, são os garotos espertos que dão cabo da criatura verruguenta, e depois se reúnem no ponto de encontro costumeiro para tomar chocolate maltado e dançar ao som de alguma cançãozinha boba enquanto os créditos deslizam pela tela.
São três oportunidades distintas de catarse num ciclo de filmes – nada mau para um punhado de épicos de baixo orçamento que normalmente eram rodados em menos de dez dias. Isso não aconteceu porque os roteiristas e produtores e diretores desses filmes queriam que acontecesse; aconteceu porque as histórias de terror ficam mais à vontade naquele ponto de conexão entre o consciente e o subconsciente, o lugar onde tanto a imagem como a alegoria ocorrem mais naturalmente e com efeito mais devastador. Há uma linha direta de evolução entre I was a teenage werewolf e Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick, e entre Teenage Monster (monstro adolescente) e o filme de Brian de Palma, Carrie, a estranha.
** Tele-evangelista norte-americano.
A grande ficção de horror é quase sempre alegórica; às vezes a alegoria é intencional, como em A revolução dos Bichos e 1984, e às vezes simplesmente acontece – J.R.R. Tolkien jurava de pés juntos que o Senhor do Escuro de Mordor não era Hitler num disfarce da fantasia, mas as teses e monografias continuam afirmando o contrário… talvez porque, como diz Bob Dylan, quando você tem muitas facas e garfos, tem de cortar alguma coisa.
As obras de Edward Albee, de Steinbeck, Camus, Faulkner – essas obras lidam com o medo e a morte, às vezes com o horror, mas normalmente esses escritores tradicionais abordam o tema de modo mais normal e realista. Seu trabalho se enquadra em um mundo racional; são histórias que “poderiam acontecer”. Estão na linha de metrô que atravessa o mundo externo. Há outros escritores – James Joyce, Faulkner novamente, poetas como T.S. Eliot, Sylvia Plath e Anne Sexton – cuja obra entra no território do inconsciente simbólico. Estão na linha de metrô que atravessa a paisagem interna. Mas o escritor de horror está quase sempre na estação que une as duas, pelo menos se ele está afiado. Quando está em sua melhor forma, muitas vezes temos a estranha sensação de não estarmos totalmente adormecidos ou acordados, o tempo se distende e sai de lado, ouvimos vozes mas não distinguimos as palavras ou o sentido, os sonhos parecem reais e a realidade parece um sonho.
Trata-se de uma estação estranha e maravilhosa. Hill House fica ali, naquele lugar onde os trens passam nos dois sentidos, com as portas que se fecham de modo perceptível; a mulher no quarto com papel de parede amarelo está ali, rastejando pelo chão com a cabeça pressionada sobre aquela leve mancha de gordura; as criaturas tumulares que ameaçavam Frodo e Sam estão ali; e o modelo de Pickman, do conto homônimo de H.P. Lovecraft; o wendigo, o monstro canibal dos índios algonquinos no Canadá; Norman Bates e sua terrível mãe. Não há despertar ou sonhar nessa estação, mas apenas a voz do escritor, baixa e racional, falando sobre como o tecido resistente das coisas às vezes pode se rasgar de maneira assustadoramente repentina. O escritor lhe diz que você quer ver o acidente de carro, e ele está certo – você quer mesmo. Há a voz de um morto ao telefone… alguma coisa atrás das paredes da velha casa que pelo som parece maior do que um rato… movimentos ao pé da escada do porão. Ele quer que você veja todas essas coisas, e mais; quer que você coloque sua mão no vulto debaixo do lençol. E você quer colocar sua mão ali. Sim.
Estas são algumas das coisas que sinto que a narrativa de terror faz, mas estou firmemente convencido de que deve fazer mais uma, e esta acima de todas as outras: deve contar uma historia que mantenha o leitor ou o ouvinte fascinado por algum tempo, perdido num mundo que nunca existiu e nunca poderia existir. Deve ser como o convidado do casamento que pega um drink a cada três vezes que o garçom passa. Durante toda minha vida como escritor, tenho defendido a idéia de que na ficção o valor da história prevalece sobre todas as outras facetas do ofício da escrita; caracterização, tema, atmosfera, nada disso vale alguma coisa se a história não tiver graça. E se a história conseguir prendê-lo, todo o resto é perdoável. Minha citação predileta a respeito disso veio da pena de Edgar Rice Burroughs, que não é o candidato de ninguém para a vaga de Maior Escritor do Mundo, mas um homem que compreendeu por completo o valor da história. Na página um de A Terra que o Tempo Esqueceu, o narrador encontra um manuscrito numa garrafa; o resto do romance é a apresentação desse manuscrito. O narrador diz: “leia uma página, e eu serei esquecido”. É uma promessa que Burroughs cumpre – e muitos escritores com mais talento do que ele não.
Em suma, meu nobre leitor, eis uma verdade que faz o mais forte escritor ranger os dentes: com exceção de três pequenos grupos de pessoas, ninguém lê o prefácio de um autor. As exceções são: um, os parentes mais próximos do escritor (normalmente sua mulher e sua mãe); dois, os representantes oficiais do escritor (e o pessoal do setor editorial e afins), cujo interesse principal é descobrir se ao longo das divagações do autor alguém que foi difamado ou caluniado; e três, aquelas pessoas que de algum modo ajudaram o escritor em sue caminho. Essas são as pessoas que querem saber se o autor agora está tão cheio de si a ponto de esquecer que não chegou até ali sozinho.
Outros leitores podem sentir, o que é perfeitamente justificável, que o prefácio do autor é uma imposição indecente, um comercial de várias páginas sobre ele mesmo, mais ofensivo até do que os anúncios de cigarro que proliferam na parte central dos livros de bolso. A maior parte dos leitores vem assistir o espetáculo, e não ficar vendo o contra-regra agradecer aos aplausos diante das luzes. Mais uma vez, isso é perfeitamente justificável.
Vou me despedir agora. O espetáculo em breve começará. Entraremos naquele quarto e tocaremos o vulto sobre o lençol. Mas antes que eu vá embora, quero tomar só mais uns dois ou três minutos do seu tempo e agradecer a algumas pessoas que pertencem aos três grupos mencionados acima – e a um quarto grupo. Agüente mais um pouco enquanto digo alguns muito-obrigados:
À minha mulher Tabitha, minha melhor e mais afiada crítica. Quando ela sente que o trabalho está bom, diz; quando sente que meti os pés pelas mãos, consegue me colocar no meu devido lugar de maneira mais gentil e amável possível. Aos meus filhos, Naomi, Joe e Owen, que têm sido bastante compreensivos com a ocupação peculiar de seu pai no quarto lá em baixo. E à minha mãe, que faleceu em 1973 e a quem este livro é dedicado. Seu encorajamento era firme e constante, ela sempre parecia dispor de 40 ou 50 centavos para o envelope auto-endereçado e selado de resposta e ninguém – incluindo eu mesmo – ficou mais feliz do que ela quando consegui “chegar lá”.
No segundo grupo, agradecimentos especiais vão para o meu editor, Willian G. Thompson da Doubleday & Company, que tem trabalhado pacientemente comigo, que tem suportado meus telefonemas diários com bom humor constante, e que foi gentil com um jovem escritor sem qualquer currículo alguns anos atrás, ficando ao seu lado desde então.
No terceiro grupo estão os primeiros compradores da minha obra: Sr. Robert A. W. Lowndes, que adquiriu os dois primeiros contos que vendi em minha vida; Sr. Douglas Allen e Sr. Nye Willden da Dugent Publishing Corporation, que compraram tantos dos seguintes para as revistas Cavalier e Gent, nos velhos tempos de dureza em que os cheques chegavam bem a tempo de evitar o que a companhia elétrica eufemisticamente chama de “interrupção do serviço”.; a Elaine Geiger, Herbert Schnall e Carolyn Stromberg da New American Library; a Gerald Van der Leun da Penthouse e Harris Deinstfrey da Cosmopolitan. Muito obrigado a todos vocês.
Há um último grupo ao qual eu gostaria de agradecer, o grupo composto por cada um dos leitores que um dia abriu a carteira para comprar alguma coisa escrita por mim. De muitas maneiras, este livro é seu, porque tenho certeza de que jamais teria acontecido sem você. Então, obrigado.
Aqui, onde estou, ainda está escuro e chove. Uma noite bem agradável. Há uma coisa que eu quero mostrar a você, uma coisa em que quero que toque. Está num quarto não muito longe daqui – na verdade, fica bem na próxima página.
Vamos?

Bridgton, Maine
27 de fevereiro de 1977

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