25 de dezembro de 2009

um natal (bêbado) a menos


Já faz alguns anos que não vejo meus melhores amigos. Lembrei deles por causa de uma foto que achei numa caixa de sapatos velha. Nem lembro mais o que procurava, achei-a pela manhã e desde o momento que bati o olho naquela foto desbotada, não consigo tirar cada uma daquelas figuras da minha cabeça, talvez por ser véspera de natal, talvez não, quem vai saber...?

Na foto, eu, Caio, Johnny e Alberto, todos sujos, num dia chuva ferrenha e ruas lamosas. Cabelos molhados, roupas encharcadas, e uma saúde que não deixou nenhum de nós cair de cama por causa de gripe. O ano era 1969 e muita coisa estranha havia acontecido naquela época.

O momento registrado na foto, eu lembrava com uma clareza absurda. Contudo, não conseguia me lembrar da última vez que tinha encontrado cada um dessas grandes figuras que mudaram minha vida. O dia todo foi assim, mas a medida que a noite caía, as memórias apareciam. Primeiramente, difusas, embaralhadas. Depois, mais claras. Foi assim que me lembrei da última vez que vi Caio.


Caio era o mais jovem, depois de mim. Ativo, desengonçado e cheio de ideias geniais. O primeiro jornal da rua foi ideia dele, a primeira corrida de carrinhos de rolimã também. Em ambos os casos, ele pagou o preço por ser a mente criminosa por trás dos atos: descobrindo o fim que estavam tomando os seus cadernos, sua mãe o pôs de castigo por um bom tempo, acho que uns 3 dias (o que era uma eternidade para nós); ele também foi castigado, mas de forma mais branda pela corrida de carrinhos de rolimã, já que foi quem mais sofreu com o incrível acidente na curva dois, e gesso por um mês no braço esquerdo.

Toda a aquela alegria, porém, não se achava mais com tanta facilidade na última vez que o vi, por volta de 1996. Ele havia adoecido severamente, definhava numa cama com alguma doença que ninguém conhecia ou sabia tratar direito. As ideias mirabolantes se perdiam na fala entre uma dose de remédios e a sede constante que sentia. Senti vê-lo assim. Por um momento não era Caio deitado naquela cama de hospital, num quarto excessivamente branco, era eu. E isso tudo por que éramos jovens demais.


Já Alberto era louco, fumante desde os 13 e bebia já nessa época. Para nós (eu e Caio) aquilo era uma revolta contra a monotonia do bairro, era a chance de se destacar em meio a um marasmo de garotos sem graça. Nossa rua sempre teve muitos garotos, mas nós quatro éramos realmente especiais. Éramos as ideias de Caio, éramos a atitude de Alberto. Éramos livres demais para aquela cidadezinha perdida no mapa de um país qualquer.

Não lembro quando vi Alberto, pela última vez. Pelo menos, não em vida. Em uma noite quente de janeiro de 1990, ligaram-me para que eu fosse ao IML. Por algum motivo, eu era o único contato que atendeu ao telefone e se dispôs a ir fazer o reconhecimento do corpo de Alberto. “Foi um acidente de carro horrível”, dizia o médico-legista, “tome o tempo que precisar”. Não precisei de muito, aquela tatuagem no braço (o primeiro e único do nosso grupo a ter uma) era característica. O médico me informou que ele tinha um plano que cobria todo o velório e enterro, mas não havia ninguém que pudesse cuidar do corpo. Prestei minha última homenagem a Alberto e vesti o terno de risca de giz que tanto adorava, mesmo sabendo que o velório seria com o caixão fechado. Sua ex-mulher me falou, durante o velório que ele viajava de carro a contragosto, mas dizia que precisava vê-la, após ela lhe contar que acabara por abortar espontaneamente o bebê de 8 meses que havia sido o motivo da separação do casal. Filho único, Alberto acabou não deixando filhos e o mundo envelheceu um pouco mais.


O mais velho do grupo era Johnny e, possivelmente, o mais inteligente também. Tirava notas altas, mas se metia em várias brigas na rua, quando o acusavam de ser estudioso demais ou queridinho dos professores. Cabeça quente, era também o mais sensível do grupo, sempre disposto a oferecer um ombro ou mesmo, incentivar as atitudes insanas de Alberto.

A última vez que encontrei Johnny, ela havia chegado em casa há duas horas, vindo do hospital. Sua diabetes crônica havia lhe levado as duas pernas, e seus olhos já fraquejavam. Tivemos uma conversa longa, recheada daquele humor inteligente e cáustico dele. Seu novo “alvo” era suas pernas, ou a falta delas. No começo ri sem graça de cada piada que soltava, até que uma hora entendi, “Esse era o Johnny que conheci quando me mudei aos cinco anos para aquela rua de garotos loucos”. Rimos um bocado mais, e quando já estava perto de ir embora, me perguntou como sabia que ele estava em casa. “Joyce ligou”, disse e então ele começou a chorar. O amor incondicional que aquele casal tinha um pelo outro era algo ao mesmo tempo jovem e eterno.

E aqui estou eu, velho, mas ainda vivo, com essa velha foto em mãos, pensando se cada um desses loucos foi feliz em vida. Sinceramente, arriscaria que sim. Até eu mesmo o fui, principalmente nos momentos que partilhei com cada um deles.

***

Da série "estado crônico"

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