1 de setembro de 2009

"estado crônico: edição especial"

Essa edição traz um texto que não é meu, mas que achei prudente postar aqui.

Há alguns meses li o trabalho de Michel de Certeau intitulado a Invenção do Cotidiano. Naquele momento, ainda sob a fase do luto, por ter perdido meu pai vitimado por câncer há menos de seis meses, pude compreender as razões pelas quais o seu médico não queria que ele retornasse ao hospital em seus últimos dias. O hospital, como local de salvar vidas, não seria adequado para receber um moribundo, ainda que este respeitasse a lógica da nossa sociedade mercadológica ao pagar pelo uso de salas, medicamentos e outros serviços que fossem necessários (ou não) naquele espaço. A disciplina do hospital não cederia diante na indisciplina de uma doença tão agressiva, o câncer. Mesmo assim meu pai teimou e foi para o hospital para inquietação dos médicos. Eles, pretensos salvadores da humanidade, da vida, viam-se prostrados diante de um quadro clínico. Ou seria diante de um quadro mercadológico? Afinal ele estava pagando por um serviço e não obtinha o retorno. De forma semelhante morreu Michel de Certeau, contudo não tenho ciência da riqueza de detalhes do seu leito de morte. Ironicamente foi atingido pelo câncer, uma anti-disciplina, tal como todas aquelas apontadas e estudadas por ele através de seu conceito de “táticas” que teimavam em burlar e driblar as “estratégias”. O que seria o câncer senão um crescimento desenfreado das células que, mesmo assim identificado, racionalizado, burla o saber médico e põe de joelhos aqueles que se dizem os detentores de verdades sobre o corpo humano?

Resolvida a inquietação quanto ao porquê de o médico não querer que aquela indisciplina adentrasse no espaço da disciplina, restava-me ainda uma dúvida: no momento da morte de meu pai fez-se presente na sala uma enfermeira que, nada dizendo para a família, teimava em ligar um aparelho o qual depois conheci pelo nome de eletrocardiógrafo. De que maneira pensar essa cena? No seu reduto, na sua posição de poder-saber, ela ignorava todos que ali estavam e pelejava com o objeto. No auge da teimosia minha cunhada observou que o mesmo estava sem a caneta que faz os devidos registros para saber se há algum vital no paciente. Na realidade tratava-se de um objeto que mudava a posição da pessoa: de paciente a morto, peça, corpo, dependendo do contexto e do ponto de vista. O meu era morto.

No auge da sua incapacidade de minimizar os sofrimentos do paciente, de acolher o outro, de cuidar e preservar uma vida, ela se fechava, mais uma vez, em seu saber-poder e, repetidamente, atestava sua incapacidade na simples utilização de um aparelho de uso diário.

Desse mundo de médicos e enfermeiros, o incômodo que levo ainda é notório. O que mais me inquietava era a vontade do meu pai por toda a sua vida ter querido ser médico. Seria ele um médico no sentido moderno? Faria parte desse quadro que acabo de descrever? O que meu pai realmente queria não era ser médico. O que ele queria era ajudar as pessoas, como o fez durante toda a sua vida e sempre com um sorriso estampado no rosto. Meu pai, irônico e brincalhão como era, não teria espaço nesse reduto, nesse castelo hierarquizado e repleto de vaidades. Ele não queria ser médico. Ele pensava a medicina como uma ferramenta para ajudar as pessoas. Era um sonhador.

Por Mário Viana Jr.

***

Espero que tenha ajudado, meu caro amigo. Taí seu texto!
Da série "estado crônico".

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